FONTE: arquivo da autora

1.1 LEXICOLOGIA SOCIAL

Devemos, pois, ler os grandes textos canônicos, e talvez também todo arquivo da cultura européia e americana pré-moderna, esforçando-nos por extrair, entender, enfatizar e dar voz ao que está calado, ou marginalmente presente ou ideologicamente representado em tais obras.
Edward W. Said

A Lexicologia, ciência que funda os estudos do léxico por meio das unidades lexicais, tanto quanto ao significado, à constituição mórfica e às variações flexionais, como na classificação formal ou semântica em relação a outras unidades lexicais da mesma língua em estudo, ou mesmo em comparação com outra língua, podendo ser em perspectiva sincrônica ou diacrônica, ou seja, é uma ciência que se encaixa no que comumente chamamos de ciências do léxico.

Sobre isto, Biderman (2001) salienta que a Lexicologia é uma ciência antiga que tem como objetos básicos de estudo e análise a palavra, a categorização lexical e a estruturação do léxico. Assim, Biderman (2001, p.16), enfatiza que

[…] ao nível do microcosmo lexical, cada palavra da língua faz parte de uma vastíssima estrutura que deve ser considerada segundo duas coordenadas básicas – o eixo paradigmático e o eixo sintagmático. da conjugação dessas simples coordenadas resulta a grande complexidade das redes semântico-lexicais em que se estrutura o léxico[…]

A estudiosa ainda problematiza que, embora seja considerada a Semântica como área de estudo que lida com as significações linguísticas, detém a Lexicologia fronteiras largas com a Semântica, já que se ocupa do léxico e da palavra levando em consideração sua dimensão significativa.

Sendo assim, é importante mencionar, ainda, que a Lexicologia é fronteiriça de ciências como a Dialetologia e Etnolinguística, áreas que discorrem sobre a aproximação da língua e cultura. Dado o exposto, ressalto a aproximação com a Sociologia, atribuindo-a a alcunha de Lexicologia Social.

George Matoré deu destaque, em seu artigo “La lexicologie sociale” o termo Lexicologia Social, embora não se possa determinar sua autoria sobre o conceito, tem-se em Matoré o principal representante do que se entende pela abordagem de estudo lexical que leva em consideração a valorização da realidade social de uma dada comunidade linguística. 

Matoré (1953) postula a indissociabilidade entre o significante (forma) e significado (conceito), logo distingue-se dos postulados saussureanos em que o signo estabelece uma relação simbólica entre um significado e um significante, além de ser imotivado, por outro lado Matoré (1953) destaca que a palavra, entendamos aqui o conceito de palavra como unidade lexical, tem caráter social, uma vez que representa, conforme pontua Matoré (1953, p.43) “o reflexo de um estado da sociedade” ou seja “ a palavra, seja abstrata seja concreta, tem sempre um valor social mais ou menos racional ou afetivo: é por esse aspecto da significação que se interessa a lexicologia” (MATORÉ, 1953, p. 21).

Portanto, defende Matoré (1953) que a Lexicologia, assim como a Sociologia, tem como objetos de estudo os fatos sociais, distinguindo-as quanto a especificidade do ponto de vista analisado, em que a primeira, mas especificamente, parte do estudo do léxico para explicar uma sociedade. Logo, corroborando com Matoré (1953), entendo a lexicologia como uma disciplina de cunho sociológico que se utiliza do material linguístico como ponto de partida.

Partindo deste pressuposto, adoto as proposições de Matoré (1953), sobretudo ao defender o valor social do léxico (palavra). Faço destaque ainda a Matoré (1953) ao tratar do significado das palavras quanto ao fator tempo, e para isso relativizar a oposição entre sincronia e diacronia disposta em Saussure (2012), alegando que, abstrair a palavra do fator tempo lhe parece impossível, uma vez que não se pode isolar um elemento das operações que o produziram, ou seja, a produção de uma unidade lexical se dar intrínseca ao contexto social, histórico, cultural e político. 

Sendo assim, Matoré (1953, p.55) defende que “a palavra tem passado” e, portanto, “foi pronunciada com valores diferentes pelas gerações que nos precederam”. Outro ponto a mencionar, quanto aos pressupostos dispostos na obra de Matoré, é o conjunto de procedimentos propostos para a realização dos estudos em Lexicologia Social. 

Inicialmente, os procedimentos metodológicos na obra de  Matoré (1953) incluem o estabelecimento de recortes temporais, a fim de considerar a noção de geração, etapa chamada pelo autor de “recortes racionais” e toma como base datas importantes na história do léxico e da sociedade. Em seguida, são identificados em cada faixa de tempo “campos nocionais”, ou seja, conjunto de palavras, tais elementos são definidos como palavras-testemunho.

Embora, tendo uma sistematização metodológica bem estruturada, não irei me utilizar do passo a passo proposto, mas tomo como referência para constituição dos corpora de análise.

Visto que, neste trabalho, a análise das unidades lexicais se dá sob a perspectiva da diacronia, e se propõe a uma análise que extrapole os preceitos puramente linguísticos pois “dada a sua completude, o léxico é capaz de traduzir, dentro das línguas, as relações e ordem econômicas, social e política que existe entre as diversas classes sociais” (ORSI, 2012, p.167) 

Neste sentido, este estudo do léxico da causa mortis ampara-se, também,  nas proposições da Linguística Histórica, área de estudo que comprova que “as línguas humanas se transformam no fluxo do tempo, ou seja, palavras e estruturas que existiam antes deixam de existir ou sofrem modificações na forma, na função e/ou no significado”, (SIQUEIRA; AGUIAR, 2011, p. 385), proposição ja afirmada em Biderman (2001) quando aponta que o léxico se expande e se altera e, às vezes, se contrai, de modo que as mudanças sociais e culturais são prerrogativas que modificam os usos. 

1.2 LINGUÍSTICA HISTÓRICA

As línguas são fascinantes. Não há aspectos delas que não nós maravilhe. seja sua enorme complexidade estrutural e social, seja sua imensa heterogeneidade, seja ainda o fato de que elas são realidades históricas. Mudam constantemente no eixo do tempo, e essas mudanças não se dão nem para melhor, nem para pior; as línguas não melhoram, mas também não decaem  – elas simplesmente mudam.
Carlos Alberto Faraco

Castro (1991, p.11) destaca que o objeto de estudo da Linguística Histórica é a mudança, ou seja, “o processo pela qual uma língua viva não estagna, mas evolui, acompanhando o evoluir da sociedade que a utiliza como instrumento de comunicação”, visto que, é uma área de estudo que tem entre os pressuposto o fato de que “as línguas humanas não constituem realidades estáticas; ao contrário, sua configuração estrutural se altera continuamente no tempo.” (FARACO, 2005, p. 14).

É importante, de início, destacar que a mudança gera contínuas alterações de configuração estrutural da língua sem que, no entanto, se perca em qualquer momento, aqui que costuma ser chamado de plenitude estrutural e potencial semiótico das línguas (FARACO, 2005, p 14 grifo do autor).

Ou seja, mesmo com as mudanças, conforme pontua Faraco (2005) a língua não perde a capacidade sistêmica de organização, dado que permite ao falante as condições necessárias para se manter em efetiva comunicação tendo, portanto, os recursos necessários para compreensão e entendimento dos significados. Embora, contudo, no uso da língua, o falante não tenha plena consciência dos processos de mudança, ou seja, enquanto falantes “construímos uma imagem da nossa língua que repousa antes na sensação de permanência do que na sensação de mudança.” (Faraco, 2005, p. 14-15).

Essa inconsciência sobre a mudança se dá por vários motivos, dentre eles a forma lenta em que acontece, e também por que as mudanças atingem apenas partes da língua e não o todo, o que Faraco (2005) chama de “um complexo jogo de mutação e permanência”.

É neste jogo de permanência e mudança que repousa os olhares da Linguística Histórica, sobretudo no que diz respeito à análise lexical. tendo em vista que o léxico, conforme destaca, alegoricamente, Villalva e Silvestre (2014, p. 28), funciona como uma espécie de cérebro no corpo das línguas “que concentra e armazena a informação que os restantes sistemas, solidariamente, transformam em vida.” Sendo assim, faz-se necessário situar o léxico dentro do campo de estudo linguístico. 

Enquanto gramática, o léxico pode ser visto como o lugar onde reside toda a informação que não é derivável, todas as propriedades idiossincráticas das línguas. é nesse papel que o léxico se distingue da sintaxe, da semântica e da fonologia, módulos que se encarregam da mecânica e da interpretação dos enunciados frásicos, formado a partir da matéria prima lexical, mas também se distingue da morfologia , a quem cabe a estruturação das palavras, igualmente formada a partir da matéria prima lexical. (VILLALVA; SILVESTRE, 2014, p.28)

Portanto, é nesta perspectiva que o estudo diacrônico das unidades lexicais de causa mortis se faz relevante para a análise da história da língua sob o viés da mudança e/ou permanência na forma de nomear a causa mortis ao longo dos anos.

Assim, assumo os conceitos de Linguística Histórica lato sensu, proposto em Mattos e Silva (1999), esta que inclui descrições e interpretações sincrônicas datadas e localizadas e de Linguística Histórica Strictu Sensu, esta última que se centra na mudança linguística no tempo levando em consideração fatores intra e extralinguísticos, além de fatores estruturais e sócio-históricos.

Portanto, reitero que a linguagem/língua não constitui uma realidade estática, pelo contrário, sofre mutação em sua estrutura ao longo dos anos, sendo o léxico deixado nos textos o principal registro histórico dessas mudanças.

Logo, ciente de que o “léxico é um conceito complexo e que o seu estudo permite diversas abordagens”, e que “o léxico de uma língua corresponde  ao somatório abstrato do léxico dos falantes dessa língua […]” (VILLALVA; SILVESTRE, 2014, p.71-72) entendo as unidades lexicais de causa mortis como importantes veículos linguísticos para adentrar à realidade de produção, portanto, de análise diacrônica dos aspectos sociais, históricos e até políticos que intervém nas constituições linguageiras.

 Para isto, faz-se fundamental entender que as unidades lexicais são definidas como classes abertas ou fechadas. Assim, constitui uma classe aberta quando está admite a entrada de novas unidades, adquirindo outros sentidos, por outro lado, as classes fechadas, ou de significação gramatical, são constituídas por um número relativamente reduzido e finito de unidades lexicais, nas quais, conforme  Correia e Almeida (2012), raramente ocorre inovação, uma vez que uma mudança nessa classe acarreta consequências no nível estrutural da língua. Neste sentido, é  necessário dizer que o léxico de causa mortis está dentro do que se entende no estudo lexical por classes abertas.

No que diz respeito à classificação do léxico, Bassetto (2016, p.127) salienta que as unidades lexicais de significação gramatical não dispõem de conteúdo significativo característico, por isso assumem funções diversas na estrutura do período, cujo inventário é geralmente fechado, enquanto as unidades de significação lexical são passíveis de mudanças, estas que assim como pontua Bassetto (2016, p.127) “acompanham as alterações sociais, econômicas, políticas e culturais da comunidades”, o autor salienta ainda que “modificações sociais mais rápidas aceleram também as do léxico, conforme se verificou no século XX e no nosso, com a rápida evolução tecnológica (…)”.

Basseto (2016, p.127) define léxico como um

(…) conjunto de todas as palavras pertencentes de alguma forma a um idioma, passíveis de ser empregadas em seus vários níveis linguísticos. Constitui um inventário aberto, em parte mutável, por representar a Weltanschauung, a visão do mundo e a cultura do povo que usa. (grifo do autor)

De modo que, a parte definida, pelo autor, como mutável diz respeito às unidades lexicais de significação externa, ou seja, aquelas com significado lexical, são as chamadas classes abertas, tal como definem Correia e Almeida (2012). 

Deste modo, o estudo do léxico de causa mortis na perspectiva histórica possibilita

A compreensão de processos que ocorreram no passado aliada ao conhecimento do presente mostra como a dinamicidade da língua navega em fluxos e contrafluxos, entre inovação e conservação dos aspectos linguísticos. (MARCOTULIO et al, 2018, p.15)

Portanto, relacionar a história interna com a externa das línguas permite um olhar holístico do pesquisador no que diz respeito à constituição das unidades lexicais em análise. De modo que, determina as intervenções gramaticais e lexicais dos constituintes linguísticos, assim reafirma e desvela o “complexo jogo de mutação e permanência”, destacado em Faraco (2005).

1.3 FILOLOGIA CRÍTICA PERMEADA PELAS HUMANIDADES DIGITAIS

A discussão, neste projeto de tese, fundamenta-se, sobretudo, nas proposições de uma Filologia Crítica,  proposta por Sacramento e Santos (2017), em que o labor filológico requer um perfil ético de leitura, tendo em vista que, conforme aponta Said (2007, p.83), “a leitura é o ato indispensável, o gesto inicial sem o qual qualquer filologia é simplesmente impossível”, portanto “uma verdadeira leitura filológica é ativa” (SAID, 2007, p.82), de modo que, requer do filólogo “uma tomada de postura, implicando o crítico-filólogo em seus gestos de interpretação” (SACRAMENTO; SANTOS, 2017, p.132).

Ciente dessa missão enquanto filóloga, para análise do léxico de causa mortis, tomo como referência a proposição de Said (2007, p.82-83), quando assevera que linguagem, portanto, as palavras são “parte formativa e integrante da própria realidade”, ou seja, não se trata de “marcadores e significantes passivos que representam despretensiosamente uma realidade”, mas carregam em si significados historicamente situados e politicamente motivados, deste modo, é integrante de uma realidade social.

Portanto, estudar o léxico de causa mortis caminhando pelas veredas da Filologia Crítica “implica adentrar no processo da linguagem já em funcionamento nas palavras e fazer com que revele o que pode estar oculto, incompleto, mascarado ou distorcido em qualquer texto que possamos ter diante de nós” (SAID, p.82.), todavia, levando em consideração que a leitura filológica é uma ética, ou tal como propõe Sacramento e Santos (2017) é um modo de participação ativa e deliberada na esfera mundana textual, política, cultural, de modo a situar o crítico-filólogo às circunstâncias de produção e suas intervenções, assim o expõe a um campo aberto, extinto de qualquer estabilidade previamente estabelecida no empreendimento da interpretação.

Entendendo assim, a inegável e estreita relação de Filologia ao campo das demais ciências das humanidades, não como uma técnica, mas uma ciência humanística.

Na discussão que versa sobre humanismo Said (2007, p.85) dispõe que “para o humanista o ato de ler é assim o ato de primeiro colocar-se na posição do autor, para quem escrever é uma série de decisões e escolhas expressas pelas palavras”, proposição que reafirma o caráter motivado e historicamente situado do léxico. 

Assim, retomando e situando a Filologia como uma ciência das humanidades, destaco o posicionamento de Said (2007, p.42) no que diz respeito ao humanismo, quando aponta que,

o humanismo não consiste em retraimento e exclusão. Bem ao contrário: o seu objetivo é tornar mais coisas acessíveis ao escrutínio crítico como o produto do trabalho humano, as energias humanas para a emancipação e o esclarecimento, e, o que é igualmente importante, as leituras e interpretações humanas errôneas do passado e do presente coletivo.

Proposta filológica já defendida nas primeiras linhas desta seção, em outras palavras, “as humanidades [insisto incluir aqui a Filologia] dizem respeito à história secular, aos produtos do trabalho humano, à capacidade humana de articular expressão” ( SAID, 2007, p.34).

Por isso, é importante mencionar que qualquer investigação de caráter histórico e interpretativo, parafraseando Santos (2015), não é desenvolvida e utilizada fora da cultura e da história, ou seja, na pesquisa filológica não há um ambiente investigativo alheio ao mundo, neste sentido corroboro com as ideias de Culler (1990) ao defender a relação próxima entre Filologia e cultura.

Culler(1990) justifica que, uma atividade filológica frequente é a de reconstrução do sentido de uma palavra e enfatiza que tal atividade está baseada em pressupostos culturais sobre a natureza dos textos e da linguagem, de modo que com a existência e a análise dos sentidos das palavras é possível resgatar e reconstruir a cultura e história a partir das práticas e métodos da Filologia.

Dada a estreita relação entre Filologia e cultura, enfatizo a fala de Sacramento e Santos (2017, p.139), ao apontar a proposição de Said de que  “não se pode pensar o coletivo, ou, neste caso, o mundo dos textos e das interpretações, sem antes reconhecer seu próprio lugar dentro dele”.

Os atos de adentrar no processo em funcionamento da linguagem, considerar um texto como um campo agônico em que autor, mundo e leitor se relacionam de modo implicado e comprometido, tornando a leitura um ato de emancipação e esclarecimento com fins de ampliação e alargamento da agência humana, são os atos que configuram a prática localizada do intelectual que lida com textos e que apontam para uma campo ampliado de atuação da crítica. (SACRAMENTO; SANTOS, 2017, p.143)

É nesta perspectiva que a Filologia, uma das ciências mais antigas das humanidades, embora mantendo a função precípua de restituição da forma genuína dos textos, de modo a recuperação do patrimônio cultural escrito de uma dada  cultura (CAMBRAIA, 2005), adentra para outros vieses a fim de acompanhar as mudanças sociais e linguageiras. Sobre isto, Ximenes (2013, p.178) reforça:

Entendemos que só conseguimos conhecer o passado dos por meio dos registros deixados por eles, e uma das tarefas da Filologia, diríamos, o seu papel principal, é o resgate da produção textual de uma época que possibilita conhecer a história da língua, as possíveis mudanças geradas pelas alterações sociais e, sobretudo, compreender todas as manifesta vividas por uma comunidade, expressas nas entrelinhas dos textos. A Filologia é a ciência que tem como objeto de trabalho a cultura dos povos através de seus textos e isto só se pode fazer através do conhecimento mais amplo possível de todos os aspectos da língua.

Para tanto, faz-se necessário que o filólogo ao adentrar as profundezas dos textos deixados nos tempos passados não esteja vivendo alheio às condições de seu tempo, visto que a linguagem, e sobretudo a escrita, adquire novas formas, suportes e meios de divulgação. 

[…]é necessário destacar que o filólogo é marcado por práticas sociais de leituras, inclusive no âmbito digital e, por isso, ele precisa preparar os seus textos de forma tal que responder às demandas da sociedade, comunicando qualquer no que seria o arquétipo do original ou, ainda respeitando os de recepção via tela do computador. (SACRAMENTO; MAGALHÃES, 2018, p.40)

É nesta seara que o filólogo se depara com a urgência em situar-se às atuais tecnologias digitais de produção, difusão e leitura de textos, nesta perspectiva Sampaio Holanda e Ximenes (2022, p.125) enfatizam que,

[…]a filologia caminha pari passu à humanidade, por isso adquire novos formatos, novos métodos e novos objetos de investigação, embora permaneça centrada no texto. Sendo assim, ainda que atravessada pelas recentes tecnologias preserva em suas tarefas primordiais o desvelar de aspectos sociais, históricos, culturais e linguísticos, partindo do texto.

Portanto, é necessário enfatizar que, como destaca Alves e Ximenes (2019) a prática de leitura de textos antigos requer zelo, uma vez que, ao produzir um texto o autor/locutor acessa uma dimensão linguística atualizada por um sujeito individual ou coletivo, situado e pertencente a um contexto, a uma cultura em diálogo com interlocutores presentes, passados e futuros (BAKHTIN, 2008).

É neste sentido que as Humanidades Digitais, denominadas no Manifesto das Humanidades Digitais (THATCAMP, 2010) como uma “transdisciplina”, pois porta  métodos  que  fazem  relação  com  o  digital  no  domínio  das ciências humanas e sociais, contribuem para o labor filológico, situado-o às recentes dimensões tecnológicas, desse modo, corrobora com Said (2007) na proposição de uma Filologia de caráter humanístico, de maneira que haja a transposição de um domínio, ou seja, de uma área da experiência humana para outra.

Com isso, a mediação tecnológica para o trato e análise de texto, bem como os suportes, os formatos e os meios de difusão da linguagem abre antigas lacunas conceituais.  

A exemplo da observação em Paixão de Sousa (2014), quando destaca que o trabalho  com  o  texto  antigo  no  ambiente  digital  propicia  o  surgimento  de  uma  Nova  Filologia  e salienta para a possibilidade de uma ‘nova’ práxis filológica, embora mesmo efervescente no campo da pesquisa, não goze de tanta receptividade ou reconhecimento.

Maria Clara Paixão de Sousa (no prelo) observa que as “tecnologias digitais de produção e de difusão do texto representam uma forma substantivamente nova de ‘texto’”, que inserido no contexto da Humanidades Digitais, deságua em uma “transformação profunda no funcionamento das humanidades a partir de sua inscrição no ambiente digital de difusão do texto”. Transformação, sobretudo, notável nas disciplinas acadêmicas voltadas ao texto e à palavra.

No campo da Filologia, compreende-se o texto como testemunho histórico da sociedade, no entanto, o texto seja impresso ou digital apresenta diferentes tipos de problemas, o primeiro, como é sabido sofre pela voracidade do tempo, seja pelo armazenamento inadequado ou mesmo pela corrosão de material causado por diferentes fatores, já o segundo põe o filólogo/pesquisador do texto em um problema de ordem prática, que é a gestão do material e acesso a longo prazo, tendo em vista que as tecnologias mudam, podendo não suportar os diferentes formatos digitais. Este último problema, enfatizo em dizer, que é muito mais como um problema de ordem das políticas linguísticas, que abarcam questões de caráter social e de interesses políticos e empresariais, do que de ordem prática ou técnica, mas esta discussão será lacuna deixada para outra investigação. 

Retomando o conceito de texto, sob a perspectiva da Filologia, Crane et al (2008) ao definir a ‘nova filologia’ como e-philology, sugerem que as práticas de edição  e  de análise  de  textos devem evoluir, uma vez que a cultura digital está intimamente ligada às humanidades.

Portanto, na perspectiva da Filologia Virtual, termo cunhado em Monte e Paixão de Sousa (2017), a edição digital possibilita a leitura e acesso por um público amplo, constituído tanto por especialistas (linguistas, historiadores, sociólogos, etc.), mas também pela comunidade menos especializada. Sendo, portanto, a “preservação”  e  a  “ampla  divulgação” contribuições significativas do texto digital. 

O uso do termo texto digital é defendido em Paixão de Sousa (2009, p.160) como uma representação abstrata, ou nos termos da autora, é descorporificado, portanto, a estudiosa sugere que o ““texto digital” diferencia-se  das  demais  formas de texto pela inclusão de etapas de processamento artificial da linguagem  em sua cadeia de difusão”, e para diferir de texto material defende:

O que torna um texto “digital”, de fato, não é simplesmente a técnica de registro do sistema simbólico, mas fundamentalmente a tecnologia envolvida na construção das correspondências entre símbolos e informação linguística: há uma diferença lógica, para além da material, entre o texto no  meio digital e os outros textos. O processamento digital inclui uma etapa adicional de codificação de informação – e essa etapa, notemos, é externa à mente do produtor e do receptor do “texto”, algo inédito frente à tecnologia anterior. (PAIXÃO DE SOUSA, 2009, p.165)

Portanto, enfatizo que há uma ampla discussão quanto aos conceitos de textos digital e de texto material, uma vez que, conforme destaca Paixão de Sousa (2022), as noções terminológicas de “digital” e “material” ainda carregam certa imprecisão.

Nesta arena de discussão, a dimensão física do artefato que porta o texto entra em pauta, uma vez que, a exemplo das áreas de estudo como a Codicologia e a Bibliografia Material fundam seu campo de investigação na perspectiva da materialidade física do livro manuscrito /impresso, fundamentos um tanto díspar do que nos dispõe hodiernamente as tecnologias digitais. Portanto, demanda do estudioso um novo olhar teórico e metodológico na percepção da materialidade física dos artefatos disponíveis a portar textos. Vale ressaltar que,

[…]a propriedade “desconstruída”, “fragmentada” ou “descorporificada” do documento digital não determina a impossibilidade da abordagem material do texto, e sim indica a necessidade de repensarmos as categorias analíticas que se podem aplicar a esse novo “objeto fabricado” (PAIXÃO DE SOUSA, 2013, p.19)

Paradigma que subverte a noção de materialidade, sobretudo quando Paixão de Sousa (2013) discute uma forma de texto que, de certa forma, não parece ter dimensão física, porém se localiza nos mecanismos lógicos computacionais que possibilitam a constituição e circulação. Assim, a estudiosa propõe uma definição material para o texto digital, a começar pela delimitação de sua dimensão documental na instância de representação do código semiótico utilizado na escrita própria da tecnologia digital, ou seja, a instrução lógica computacional (digital) para a representação na instância natural (humana), uma vez que a visualização de um texto legível em uma tela de computador é o produto final de um extenso trabalho de processamento de informações codificadas em linguagem computacional, conforme aponta Paixão De Sousa.

Portanto, anseio com essa discussão ressaltar que, com o advento das tecnologias, as ciências das humanidades, a exemplo da Filologia e da Linguística, surgem novos suportes para as fontes documentais, trazendo com eles não só novas possibilidades e limites, mas uma nova forma de fazer humanidades, pressupostos metodológicos Humanidades Digitais. 

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